DIÁLOGOS INTERCULTURAIS
A visita ao Montijo, inscrita na edição de 2007 do programa Conhecer e Divulgar o Património da nossa Região, foi particularmente profícua para Rosa Nunes. Um Cristo em marfim, indo-português, dos finais do século XVII, objecto de veneração e culto por pescadores[1], impressionou fortemente a artista, que na
presente exposição o elegeu como artefacto paradigmático da síntese cultural luso-asiática. Artistas indianos representaram com extraordinário dramatismo a agonia de Cristo, cristalizada no corpo moribundo que Rosa Nunes recupera e ao qual acrescenta novo sopro de vida, fragmentando-o em cirúrgico trabalho desconstrutivista para que cada observador possa realizar a sua própria reconstrução e quiçá repetir com Rui Knopfli[2]: Neste raso Olimpo argamassado em febre / e coral, o Deus maior sou eu […] / por mais que me abram o corpo / em forma de cruz e me submetam a árida / voz às doces inflexões do cantochão latino /[…] o sangue que impele estas veias / é o meu […] Dolorido e exangue o próprio / Cristo é mouro da Cabaceira e tem a esgalgada / magreza de um velho cojá asceta.
Dores do Mundo I - III
As imagens do Cristo de Montijo, que nos remetem para o estilo indo-português, que se dispersou da China à Europa e ao Brasil, podem ser confrontadas com quatro Cristos indo-portugueses e cíngalo-portugueses da excelente colecção de Rosa e Mário Varela Gomes, a quem muito agradecemos a graciosa cedência.
A arte indo-portuguesa, particularmente rica no que concerne ao mobiliário, revela um feliz cruzamento de culturas, em que os dois lados se interrogam, se observam, se analisam e dialogam. Quando a tripulação de Vasco da Gama chegou à Índia, interpretou os templos hindus como igrejas invulgares, os brâmanes, em suas vestes brancas, desfiando rosários de contas, padres, e a imagem da deusa Durga, uma representação da Virgem Maria [3] Uma crónica cingalesa (Rajavali) relata da seguinte forma a chegada de uma armada portuguesa: “[…] sendo o rei informado de que havia no porto uma raça de gentes muito brancas e formosas, que usam botas e chapéu de ferro, e nunca se detêm em parte alguma. Comem uma espécie de pedra branca e bebem sangue […] Possuem, além disso, canhões que produzem um ruído semelhante ao trovão. Uma bala disparada por qualquer deles, depois de percorrer uma légua, é capaz de destruir um castelo de mármore”[4]
Com base na extensa bibliografia disponível sobre a Expansão Portuguesa é defensável a perspectiva dos que a interpretam como um processo de interculturalidade, mais do que como uma epopeia de hegemonia cultural. O milagre da transformação económico-social operada à escala global pela minúscula metrópole portuguesa, só é explicável pela prática de uma estratégia de interacção positiva, de construção de alianças com as mais diversas humanidades que as novas geografias das fímbrias de longínquos oceanos foram desnudando.
D. João II, um dos monarcas europeus mais visionários e progressistas do seu tempo, concebeu e pôs em marcha a aventura expansionista marítima portuguesa. Um vastíssimo império comercial marítimo foi sendo desenhado. O comércio mais do que a conquista, a paz mais do que a guerra, o entendimento multicultural e a partilha vantajosa de recursos, assentes em ciência náutica de vanguarda, em cultura marítima e informação internacional, fizeram dos portugueses de finais de quatrocentos os herdeiros dos navegadores e mercadores fenícios.
O pensamento e a acção de D. João II espelham-se de forma admirável no Baptismo do rei do Congo, ocorrido em Setúbal, em 1492[5]. Através deste acto selava-se uma aliança, de igual para igual, entre o reino de Portugal e o poderoso reino africano. Portugal assumia claramente a vanguarda da Cristandade e reconhecidamente representava-a.
A partir de reflexão sobre a ancestral capacidade portuguesa de atravessar a diferença, é tempo de olharmos com Rosa Nunes as marcas do diálogo intercultural ou do choque de culturas (?) na Contemporaneidade.
Se nas imagens do Cristo indo-português, a autora optou pela fragmentação do objecto, nos restantes trabalhos, constrói imagens compósitas ou múltiplas, jogando com a passagem do tempo cronométrico, de clara referência cinematográfica, como em O Orante e cria sequências semânticas, através da agregação de imagens aparentemente desconexas, como em Configurações da lusofonia e canção de esperânça.
As três fotos que integram Configurações da lusofonia e canção de esperança pressupõem um discurso mais complexo e controverso. Personagens, de distintas raízes étnicas, convivem, ilustrando os confins marítimos da lusofonia (Portugal, Cabo-Verde e Timor). Momentos fotojornalísticos particularmente felizes, a que a autora entendeu conferir uma acrescida carga simbólica, eliminando o cenário ou seja a distância entre os actores e o público. A imagem de um grafito politicamente correcto, lacrimejando em velho muro urbano, aparentemente inócuo, traz para um primeiro plano a questão do suporte, da epiderme que recusa o texto e que finalmente o expele não sem sofrimento. A legenda, passa a contra-legenda, a tensão e a desconfiança instalam-se.
Apesar de tudo, para Portugal, navegar continua a ser preciso…Hesito entre recorrer à eloquência de um geógrafo ou de um poeta para apoiar a afirmação com que concluo este texto. Darei então a palavra a ambos:
“Ainda hoje, o que valoriza Portugal no contexto da União Europeia é o seu potencial de interacção através da fronteira marítima, potenciada pelo valor das heranças das relações transatlânticas”[6]
“África ficou / ao umbral das portas, no calor / da praça; aqui principia / a Europa. Porém […] sob um baldaquino hindu / […] é o Oriente / que chega com seus monstros.
Do silêncio fita-nos um rosto trifronte / e nós estamos na encruzilhada / cismática desse olhar […][7]
Joaquina Soares
(Directora do MAEDS
[1] Este Cristo pertenceu à Ermida do Senhor Jesus dos Aflitos, integrada na antiga Quinta do Morgado Luís Saldanha da Gama. No dia de S. Marçal (30 de Junho) os pescadores, invocando a divindade, realizam uma romaria à ermida, onde procedem a um ritual de “lavagem” simbólica.
[2] Versos do poema Mesquita Grande, de A Ilha de Próspero, 1989, edições 70
[3] Sobre esta temática ver João Paulo Oliveira e Costa e Teresa Lacerda (2007) – A Interculturalidade na Expansão Portuguesa (Séculos XV-XVIII). Lisboa: ACIME.
[4] Op. cit. nota anterior, p.69.
[5] Relato do cronista Rui de Pina, Crónicas de D. Sancho I, D.Afonso II, D. Sancho II, D. Afonso III, D. Diniz, D. Afonso IV, D. Duarte, D. Afonso V e D. João II (introdução e revisão de M. Lopes de Almeida). Porto: Lello & Irmão Editores, 1997, p. 992-1012.
[6] Jorge Gaspar (2008) – Sobre Litoralização. Portugal:um processo histórico. Seara Nova, nº 1703, p. 4.
[7] Versos do poema A Capela de A Ilha de Próspero. Roteiro poético da Ilha de Moçambique, da autoria de Rui Knopfli, 1989, Edições 70.
A arte indo-portuguesa, particularmente rica no que concerne ao mobiliário, revela um feliz cruzamento de culturas, em que os dois lados se interrogam, se observam, se analisam e dialogam. Quando a tripulação de Vasco da Gama chegou à Índia, interpretou os templos hindus como igrejas invulgares, os brâmanes, em suas vestes brancas, desfiando rosários de contas, padres, e a imagem da deusa Durga, uma representação da Virgem Maria [3] Uma crónica cingalesa (Rajavali) relata da seguinte forma a chegada de uma armada portuguesa: “[…] sendo o rei informado de que havia no porto uma raça de gentes muito brancas e formosas, que usam botas e chapéu de ferro, e nunca se detêm em parte alguma. Comem uma espécie de pedra branca e bebem sangue […] Possuem, além disso, canhões que produzem um ruído semelhante ao trovão. Uma bala disparada por qualquer deles, depois de percorrer uma légua, é capaz de destruir um castelo de mármore”[4]
Com base na extensa bibliografia disponível sobre a Expansão Portuguesa é defensável a perspectiva dos que a interpretam como um processo de interculturalidade, mais do que como uma epopeia de hegemonia cultural. O milagre da transformação económico-social operada à escala global pela minúscula metrópole portuguesa, só é explicável pela prática de uma estratégia de interacção positiva, de construção de alianças com as mais diversas humanidades que as novas geografias das fímbrias de longínquos oceanos foram desnudando.
D. João II, um dos monarcas europeus mais visionários e progressistas do seu tempo, concebeu e pôs em marcha a aventura expansionista marítima portuguesa. Um vastíssimo império comercial marítimo foi sendo desenhado. O comércio mais do que a conquista, a paz mais do que a guerra, o entendimento multicultural e a partilha vantajosa de recursos, assentes em ciência náutica de vanguarda, em cultura marítima e informação internacional, fizeram dos portugueses de finais de quatrocentos os herdeiros dos navegadores e mercadores fenícios.
O pensamento e a acção de D. João II espelham-se de forma admirável no Baptismo do rei do Congo, ocorrido em Setúbal, em 1492[5]. Através deste acto selava-se uma aliança, de igual para igual, entre o reino de Portugal e o poderoso reino africano. Portugal assumia claramente a vanguarda da Cristandade e reconhecidamente representava-a.
A partir de reflexão sobre a ancestral capacidade portuguesa de atravessar a diferença, é tempo de olharmos com Rosa Nunes as marcas do diálogo intercultural ou do choque de culturas (?) na Contemporaneidade.
Se nas imagens do Cristo indo-português, a autora optou pela fragmentação do objecto, nos restantes trabalhos, constrói imagens compósitas ou múltiplas, jogando com a passagem do tempo cronométrico, de clara referência cinematográfica, como em O Orante e cria sequências semânticas, através da agregação de imagens aparentemente desconexas, como em Configurações da lusofonia e canção de esperânça.
As três fotos que integram Configurações da lusofonia e canção de esperança pressupõem um discurso mais complexo e controverso. Personagens, de distintas raízes étnicas, convivem, ilustrando os confins marítimos da lusofonia (Portugal, Cabo-Verde e Timor). Momentos fotojornalísticos particularmente felizes, a que a autora entendeu conferir uma acrescida carga simbólica, eliminando o cenário ou seja a distância entre os actores e o público. A imagem de um grafito politicamente correcto, lacrimejando em velho muro urbano, aparentemente inócuo, traz para um primeiro plano a questão do suporte, da epiderme que recusa o texto e que finalmente o expele não sem sofrimento. A legenda, passa a contra-legenda, a tensão e a desconfiança instalam-se.
Apesar de tudo, para Portugal, navegar continua a ser preciso…Hesito entre recorrer à eloquência de um geógrafo ou de um poeta para apoiar a afirmação com que concluo este texto. Darei então a palavra a ambos:
“Ainda hoje, o que valoriza Portugal no contexto da União Europeia é o seu potencial de interacção através da fronteira marítima, potenciada pelo valor das heranças das relações transatlânticas”[6]
“África ficou / ao umbral das portas, no calor / da praça; aqui principia / a Europa. Porém […] sob um baldaquino hindu / […] é o Oriente / que chega com seus monstros.
Do silêncio fita-nos um rosto trifronte / e nós estamos na encruzilhada / cismática desse olhar […][7]
Joaquina Soares
(Directora do MAEDS
[1] Este Cristo pertenceu à Ermida do Senhor Jesus dos Aflitos, integrada na antiga Quinta do Morgado Luís Saldanha da Gama. No dia de S. Marçal (30 de Junho) os pescadores, invocando a divindade, realizam uma romaria à ermida, onde procedem a um ritual de “lavagem” simbólica.
[2] Versos do poema Mesquita Grande, de A Ilha de Próspero, 1989, edições 70
[3] Sobre esta temática ver João Paulo Oliveira e Costa e Teresa Lacerda (2007) – A Interculturalidade na Expansão Portuguesa (Séculos XV-XVIII). Lisboa: ACIME.
[4] Op. cit. nota anterior, p.69.
[5] Relato do cronista Rui de Pina, Crónicas de D. Sancho I, D.Afonso II, D. Sancho II, D. Afonso III, D. Diniz, D. Afonso IV, D. Duarte, D. Afonso V e D. João II (introdução e revisão de M. Lopes de Almeida). Porto: Lello & Irmão Editores, 1997, p. 992-1012.
[6] Jorge Gaspar (2008) – Sobre Litoralização. Portugal:um processo histórico. Seara Nova, nº 1703, p. 4.
[7] Versos do poema A Capela de A Ilha de Próspero. Roteiro poético da Ilha de Moçambique, da autoria de Rui Knopfli, 1989, Edições 70.
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